Carro importado à vista

Pela primeira vez em 50 anos, o governo de Cuba vai autorizar a importação e a compra de automóveis novos sem que os cidadãos precisem de autorização do regime.

De acordo com o diário oficial Granma, as normas jurídicas para a política de importação e comercialização de veículos de motor serão publicadas na Gazeta Oficial nos próximos dias. A decisão foi aprovada, na quarta-feira, durante reunião do Conselho de Ministros. “O VI Congresso do Partido Comunista de Cuba, realizado em abril, acordou priorizar o desenvolvimento do transporte público de passageiros, destinando a tal propósito todo o financiamento disponível.

A deterioração acumulada no transporte público e os benefícios que isso significa para a maioria da população constituíram fundamentos essenciais, nos quais se sustentou a decisão adotada”, afirmou a reportagem.

Após a publicação da lei, fica liberada a importação a varejo de motocicletas, carros, camionetas e micro-ônibus, novos e de segunda mão, para cubanos e estrangeiros residentes, empresas estrangeiras e diplomatas.

Ainda segundo o Granma, o comércio liberado será implementado de modo gradual. A prioridade caberá a quem estiver em posse das cartas de autorização — a intenção do regime de Raúl Castro é pôr fim à exigência do documento. Os preços praticados serão semelhantes aos do mercado entre particulares. Os impostos dessas negociações vão abastecer um fundo especial para o desenvolvimento do transporte público.

Moradora de Las Tunas, a 690km de Havana, a jornalista Maryla García Santos admite não ter condições para adquirir um carro. O salário médio em Cuba gira em torno de US$ 20 por mês, enquanto um carro russo da década de 1980 custa US$ 3 mil, em média. No entanto, ela reconhece a importância das decisões anunciadas pelo governo.

“Elas estão sintonizadas com a atualização do modelo econômico cubano, que começou com a aprovação das Diretrizes da Política Econômica e Social do Partido e da Revolução, no VI Congresso do Partido Comunista de Cuba”, afirmou ao Correio, por meio da internet. “O objetivo é eliminar medidas hoje obsoletas, que davam brecha para delitos”, acrescenta. Ela garante que muitos cubanos têm meios suficientes para importar veículos.

Desenvolvimento

Segundo Maryla, o transporte público na ilha é bastante deficitário, apesar de ter melhorado de forma ostensiva nos últimos cinco anos. “Muitas pessoas têm bicicletas mecânicas ou elétricas próprias”, explicou.

A jornalista, que não tem vínculos empregatícios com o governo, acredita que o regime busca aperfeiçoar o seu modelo socialista e alavancar o desenvolvimento multilateral da sociedade. Com a criação da zona especial do Porto de Mariel, na província de Artemisa (oeste), a tendência é que haja um aumento de demanda de automóveis importados. O Brasil, por meio do BNDES, liberou um financiamento de US$ 700 milhões para a modernização do porto, obra executada pela Odebrecht.

Em setembro de 2011, Cuba já tinha anunciado a autorização para a compra e a venda de automóveis usados, também banida desde 1959. A reforma se soma à aprovação da negociação de imóveis e à nova lei imigratória, que vigora desde janeiro e permitiu aos cubanos viajar ao exterior sem pedir permissão ao governo pela primeira vez em meio século.

Análise da notícia - Ventos de mudança

Quem já esteve em Havana provavelmente teve a sensação de retornar até seis décadas no tempo. Pelas ruas, é comum avistar carros antigos, das marcas Ford e Buick, entre outros, fabricados nos anos 1950. Também chama a atenção o fato de que muitos desses automóveis são usados como táxis, tornando o transporte público deficitário e perigoso.

A liberação da importação de veículos abre uma brecha para a renovação da frota, ainda que lenta, possibilitando uma revolução gradual e um rejuvenescimento do setor. É um avanço importante, no sentido de que representa uma atualização de uma decisão anunciada em 3 de novembro de 2011: os cubanos passaram a ter a autorização de negociar carros e imóveis entre si. Antes, já tinham conquistado o “direito” de comprar celulares e de utilizar os hotéis da ilha, apesar dos preços proibitivos da diária para o cidadão local.

Alguns creem que o regime de Raúl Castro começa a flertar com o capitalismo, outros veem uma medida de contingência ante um modelo obsoleto de socialismo, incapaz de atender as demandas do século 21. A dissidência reage à reforma econômica com desdém e denuncia mudanças cosméticas e inócuas para a grande maioria da população. É fato que a ilha socialista começa a se movimentar, talvez para preservar o que restou do sistema “importado” da União Soviética na década de 1960. Talvez por uma mera questão de sobrevivência. (RC)

RODRIGO CRAVEIRO
Correio Braziliense

Fonte: http://www.comexblog.com.br/destaques/carro-importado-a-vista