Tem sido prática comum a
autoridade aduaneira aplicar a pena de perdimento quando, ao proceder à
conferência aduaneira, constata diferença entre o preço declarado pelo
importador e o efetivamente praticado na importação, com base no arts. 96, inc. II, 105, inc. VI, do Decreto-Lei n.º 37,
de 18/11/1966, c/c art. 23, inc. IV, do Decreto-Lei n.º 1.455, de 7/4/1976,
arts. 604, inc. II, e 618, inc. VI, do Decreto n.º 4.543, de 26/12/2002, art.
68 da Medida Provisória n.º 2.158-35 de 24/08/2001, e arts. 65 a 69 da
Instrução Normativa SRF n.º 206, de 26/9/2002.
Entretanto, conforme será
demonstrado a seguir, não é cabível a aplicação da pena de perdimento, mas da
pena de multa.
Toda mercadoria submetida a
despacho de importação está sujeita ao controle do correspondente valor
aduaneiro, em conformidade às regras estabelecidas no Acordo sobre a
Implementação do art. VII do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio -
GATT 1994, aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 30 de 15/12/94 e promulgado
pelo Decreto n.º 1.355 de 30/12/94, bem como às disposições contidas nos arts.
20 e 148 do Código Tributário Nacional, Decreto n.º 4.543, de 26/12/2002 (arts.
76 a 82, 504, 510), e na Instrução Normativa da Secretaria da Receita Federal
do Brasil n.º 327/2003.
Quando a autoridade aduaneira não
concordar com o preço declarado na importação, deve obedecer às regras
referentes ao procedimento de valoração aduaneira, valendo-se dos métodos
previstos no Acordo de Valoração Aduaneira (GATT), fundamentando a decisão em
caso de desconsideração do valor da transação. A rejeição pelo Fisco desse
primeiro método deve ser precedida do devido processo legal, conforme art. 1.º
do Acordo. Sendo rejeitado o método do valor da transação, o Fisco aplica o
método substitutivo previsto no art. 86 da Medida Provisória n.º 2.158/2001, e,
rejeitado este também, deve aplicar o método do arbitramento, previsto no art.
88 e § único da mesma Medida Provisória.
O objetivo da valoração aduaneira
é determinar o valor de uma mercadoria para fins de incidência do Imposto de
Importação e de todo e qualquer encargo baseado no valor aduaneiro, inclusive o
ICMS e o IPI. A valoração aduaneira é sistema utilizado segundo os critérios do
Acordo de Valoração Aduaneira da Organização Mundial de Comércio (OMC),
resultando na justa fixação da base de cálculo dos tributos aduaneiros. Este
sistema contribui para a regulação dos mercados, constitui uma forma de
controlar os preços internacionais, impedindo o sub ou o superfaturamento nas
operações internacionais.
O subfaturamento na importação
consiste, basicamente, na inserção de dados falsos, especificamente a redução
do valor da importação, nos documentos indicativos da compra e venda
internacional, ou seja, nessa hipótese, o preço pago pelas mercadorias foi
superior ao constante dos documentos de importação, mas o preço real não está
declarado. O objetivo do subfaturamento é diminuir a base de cálculo dos
tributos devidos em virtude da operação de importação.
Assim, no subfaturamento na
importação a autoridade aduaneira constata a diferença entre os valores reais e
os declarados pelo importador na declaração de importação. Essa diferença pode
configurar falsidade ideológica, mas não falsidade material, pois a conduta
consiste na declaração de valores que não traduz a realidade da operação
comercial, com o objetivo de manter documento hígido quanto aos seus requisitos
extrínsecos, alterando-lhe o teor, no que diz ou encerra.
Enquadrando-se na falsidade
ideológica o subfaturamento, a autoridade aduaneira aplica a regra do art. 105,
VI do DL 37/66, e do art. 618, VI, do Decreto n.º 4.543/2002. Embora tais
dispositivos contenham previsão de que configura hipótese de dano ao erário e
cabe a aplicação da pena de perdimento à mercadoria estrangeira ou nacional, na
importação ou na exportação, se qualquer documento necessário ao seu embarque
ou desembaraço tiver sido falsificado ou adulterado, não abrange o
subfaturamento, pois, nesse caso, o legislador editou normas específicas para
regular o subfaturamento na importação, não prevendo a possibilidade de
aplicação de pena de perdimento das mercadorias, mas de pena de multa.
Com efeito, na hipótese de
subfaturamento, o art. 88 e § único da Medida Provisória n.º 2.158-35, de
24/8/2001 que pressupõe a fraude, sonegação ou conluio -, prevê a aplicação da
pena de multa administrativa de cem por cento sobre a diferença entre o preço
declarado e o preço efetivamente praticado na importação ou entre o preço
declarado e o preço arbitrado, sem prejuízo da exigência dos impostos. No mesmo
sentido, o art. 108, § único, do Decreto-lei n.º 37/66, c/c o art. 633, inc. I,
do Decreto n.º 4.543, de 26/12/2002, prevê que será de 100% (cem por cento) a
multa relativa à falsa declaração correspondente ao valor, à natureza e à
quantidade, ou seja, o arbitramento do valor das mercadorias pressupõe a
existência de fraude, sonegação ou conluio. Assim, malgrado o subfaturamento
caracterize falsidade (ideológica), foi opção do legislador excluí-lo das
hipóteses de aplicação da pena de perdimento.
Dessa forma, a aplicação de
perdimento das mercadorias por falsidade documental em virtude da constatação
de subfaturamento é ilegal. Conforme interpretação sistemática da legislação, a
conduta pode ensejar a instauração do procedimento de valoração aduaneira com a
exigência do depósito (ou garantia) da diferença dos tributos de acordo com o
valor apurado pela autoridade aduaneira, mas não a pena de perdimento, uma vez
que no caso específico de subfaturamento existe previsão expressa da ocorrência
de infração administrativa, com incidência da multa de 100% sobre a diferença
dos preços, segundo a legislação citada.
Impender frisar que o artigo 66 da
IN/SRF 206 não pode justificar a aplicação da pena de perdimento. Tal
dispositivo prevê que é situação de irregularidade, passível de submissão a
procedimento especial e pena de perdimento, a falsidade na declaração do preço
efetivamente pago ou a pagar, ou seja, quando houver indícios de
subfaturamento. No entanto, o art. 68 da Medida Provisória n.º 2.158-35, de
24/8/2001, conferiu à Secretaria da Receita Federal do Brasil o poder de
regulamentar o prazo de retenção das mercadorias sujeitas a pena de perdimento,
mas não elencou situação que configurasse a pena de perdimento nos termos em
que consta no art. 66 da IN/SRF 206. Assim, resta violado o princípio da
legalidade.
É importante destacar que o art.
69 da IN/SRF n.º 206/02 estabelece que, uma vez excluída a hipótese de fraude
(que não pertinente ao subfaturamento, nos termos do art. 88 da Medida Provisória
n.º 2.158/2001), fica autorizada a liberação da mercadoria, condicionando-a
tão-somente à prestação de garantia pelo eventual crédito tributário a ser
exigido em decorrência do reconhecimento de subfaturamento. Portanto, a questão
fica limitada à apuração de diferença do crédito tributário, sem qualquer
conotação punitiva. Dessa forma, o art. 66, inciso I, da IN/SRF n.º 206/02,
deve ser interpretado em consonância com o disposto em seu art. 69, ou seja,
necessariamente, para se instaurar o aludido procedimento, é preciso a
existência de indício de fraude (falsidade material), não se contentando a
norma com mero recolhimento a menor de tributo em razão do subfaturamento das
mercadorias. Isso significa que não haveria sentido em cobrar eventuais
diferenças de tributos decorrentes do reconhecimento de subfaturamento, uma vez
que sempre ocorreria falsidade ideológica e, portanto, ensejaria a aplicação da
pena de perdimento, não se falando em exigência complementar do crédito
tributário.
O E. TRF 4.ª R tem decidido que
não se justifica a pena de perdimento de mercadorias sob suspeita de
subfaturamento, uma vez que não constitui hipótese de aplicação dessa espécie
de sanção, mas infração administrativa sujeita à pena de multa, devendo
eventual diferença de tributo ser objeto de lançamento suplementar (AMS n.º
200570080006565/PR - 2.ª Turma -Rel. Des. Fed. Dirceu de Almeida Soares DJU
17/1/2007. TRF 4.ª R AMS 2005.70.00.003840-4/PR Rel. Dês. Fed. Antonio Albino
Ramos de Oliveira 2.ª Turma DJU 10/4/2007).
Embora o subfaturamento não enseje
a aplicação da pena de perdimento - em virtude de opção do legislador -,
caracteriza, em tese, crime de sonegação fiscal, pois quando o sujeito lança
valores inferiores ao efetivamente pagos pelo importador, além da falsidade ideológica,
está cometendo também crime contra a ordem tributária (art. 2.º, I, da Lei n.º
8.137/90). Assim, o falso é absorvido pelo crime-fim da sonegação fiscal, no
qual esgota sua potencialidade lesiva.
Portanto, conforme interpretação
que se extrai do art. 88 da MP n.º 2.158/2001, não é cabível a instauração de
procedimento especial de controle aduaneiro (art. 68 da MP n.º 2.158/2001, c/c
arts. 65 a 69 da IN SRF n.º 206/2002), em caso de fraude, sonegação ou conluio
quanto ao preço declarado, porquanto aquele procedimento pressupõe que a
mercadoria esteja sujeita a pena de perdimento, e o art. 88, § único, prevê a
aplicação da pena de multa. No mesmo sentido, § único do art. 108 do DL 37/66
prevê que será de 100% (cem por cento) a multa relativa a falsa declaração
correspondente ao valor, à natureza e à quantidade.
Todavia, a multa de 100% somente deve ser aplicada quando,
pelas circunstâncias do caso, fique caracterizada a existência de má-fé, ou
seja, o intuito de fraude, conforme art. 88 da Medida Provisória n.º
2.158/2001, pois deve se diferenciar a hipótese de declaração indevida do valor
(preço) daquela hipótese de declaração falsa. Logicamente, tudo é que falso, é
indevido, mas, se a lei utiliza as duas expressões claramente, não deve o
intérprete considerar o indevido como incluído no conceito de falso. Basta
observar que o art. 88 da Medida Provisória n.º 2.158/2001 menciona o termo “fraude,
sonegação ou conluio”.
*Vera Lúcia Feil Ponciano é juíza
federal em Curitiba.