Incentivos fiscais ao setor automotivo e o sistema multilateral de comércio

A promoção do desenvolvimento econômico sempre foi associada à industrialização. O setor automotivo, particularmente, é visto como um setor estratégico para o desenvolvimento, o que leva à concessão de grandes incentivos para a promoção de sua indústria infante e montante. Tal setor é conhecido pela agregação de valor ao produto e, sobretudo, pela geração de emprego e renda. Acredita-se que esta, ao promover o incremento do consumo, leva ao almejado desenvolvimento econômico.

A política industrial para o setor automotivo usualmente é construída pelos diferentes países a partir dos seguintes instrumentos de intervenção do Estado no domínio econômico: precificação, exigências de conteúdo local, estipulação de tipos de modelos de veículos a serem produzidos, investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), metas de eficiência energética e gestão tributária – instrumentos esses adotados isoladamente ou de modo combinado, com vistas à promoção do setor e de suas vendas.

Diversas políticas industriais para o setor automotivo já foram questionadas por membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) perante o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). A maioria dessas medidas versa sobre a cláusula de tratamento nacional, conforme o Artigo III:2 do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, sigla em inglês) e o Artigo 3:1 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC).

Das disputas analisadas, ressaltamos as seguintes: “Canada – autos”(DS139 e DS142); “Indonésia – autos”(DS54, DS55, DS59 e DS64); e “China – autopeças” (DS339, DS340 e DS342). Os resultados oferecem importantes lições e perspectivas aos membros que enfrentam controvérsias relacionadas ao tratamento tributário de seu setor automotivo.

Incentivos fiscais ao setor automotivo e a obrigação do tratamento nacional

De forma geral, a cláusula do tratamento nacional (Artigo III:2 do GATT)[1] estabelece que os produtos originários de qualquer membro importados no território de qualquer outro membro gozarão de tratamento não menos favorável que aquele concedido a produtos similares de origem nacional. Nesse sentido, esse princípio da OMC não trata da concessão de benefícios tarifários em si: apenas veda a discriminação que pode surgir da concessão desses incentivos em uma maneira mais favorável ao produto nacional, em detrimento do produto importado.

Usualmente os membros servem-se da prática de concessão de incentivos fiscais aos produtos fabricados com insumos de procedência doméstica – o que configura clara prática de exigência de conteúdo local. As decisões do OSC já estabeleceram que essa prática não está em consistência com a cláusula do tratamento nacional, na medida em que determina um tratamento mais favorável aos insumos e matérias-primas domésticas. As medidas com requisitos de conteúdo local proliferaram nos programas desenvolvimentistas de diversos membros e tornaram-se ferramenta comum para os membros com vistas à industrialização de seus territórios[2].

A identificação de eventual ofensa à cláusula de tratamento nacional implica aos membros a realização do teste da similaridade entre o produto doméstico e o importado – tal qual a aferição da existência de tratamento menos favorável ao produto importado, resultante dos incentivos fiscais, com vistas a proteger ou fomentar a indústria nacional. Nessa análise, o Órgão de Apelação na disputa “EC-Asbestos” estabeleceu o teste amplamente aceito para a determinação do que constitui o “produto similar”, que compreende a análise dos seguintes fatores: i) propriedades, natureza e qualidade do produto; ii) finalidades dos produtos; iii) gostos e preferências do consumidor; e iv) classificação tarifária[3].

A discussão sobre a similaridade costuma adquirir menor importância nas hipóteses em que o critério de diferenciação do tratamento tributário é apenas a origem dos produtos, como estabelecido pelo painel “China – Medidas afetando as importações de autopeças”[4]. Os países membros, entretanto, usualmente incluem requerimentos adicionais para afiliação em seus programas locais, com vistas a camuflar o requerimento de conteúdo nacional (por exemplo, exigência de certificação ambiental e gastos em investimentos em pesquisa e desenvolvimento). Da mesma forma, a aplicação de regras de origem locais constitui um fator importante na análise da existência de discriminação entre o que constitui um produto local ou importado.

O Artigo III:8(b) do GATT, por sua vez, permite o pagamento de subsídios para a produção doméstica, incluindo aqueles advindos de procedimentos da tributação interna em conformidade com a cláusula do tratamento nacional[5]. A discussão comumente levantada pelas Partes de uma disputa nesse assunto está relacionada à amplitude da definição dos subsídios permitidos nesse Artigo. Mais especificamente, trata-se de averiguar se os subsídios permitidos sob este Artigo incluem aqueles de natureza tributária indireta (por exemplo, subsídios advindos de créditos tributários presumidos).

Um dos argumentos apresentados pela demandada no Painel “Indonésia – Autos”defendeu que a referência a “pagamento de subsídios” deveria incluir todos os subsídios enunciados no Artigo 1º do ASMC, em contraste com o entendimento de que tais subsídios incluiriam apenas as subvenções diretas. O valor no argumento da Indonésia reside no fato de que o sistema multilateral de comércio adotou o critério do tax expenditure no ASMC, isto é, a indicação de que a concessão de incentivos fiscais, independentemente da técnica adotada para a concessão do benefício, corresponde a um gasto tributário. Esse argumento anda na direção contrária da ideia de que apenas um pagamento direto, para o propósito desse Artigo, constituiria um subsídio.

No entanto, esse não foi o posicionamento adotado no relatório do painel que entendeu que somente subvenções diretas, e não outras formas de subsídios, poderiam ser consideradas “pagamentos de subsídios” para os fins do Artigo III:8(b)[6] do GATT. Considerando que o Órgão de Apelação já estabeleceu diversas vezes que um mesmo termo deve ter o mesmo significado[7] entre os diversos acordos da OMC, talvez a controvérsia não resida na definição de subsídio em si, mas sim no que consiste um “pagamento” a partir do significado do Artigo III:8 do GATT, em contraste com a definição de “contribuição financeira” como previsto no Artigo 1.1 do ASMC.

É importante notar que doutrinadores europeus entendem que, independentemente da forma de concessão de um benefício (seja direta ou indireta), o efeito do subsídio será o mesmo: “a noção de auxílio estatal dos tratados é substancialmente mais ampla do que um simples subsídio governamental. Em vez disso, essa noção compreende benefícios positivos, tais como aquelas medidas que, a despeito de sua forma, reduzem o montante que, de outra forma, seria devido ao Estado membro e aquelas que, sem cair na definição estrita do termo “subsídio”, são de caráter similar e possuem o mesmo efeito”[8].

O debate sobre a inconsistência de tais incentivos fiscais com o Artigo III:2 do GATT ou sobre a permissão desses incentivos sob o Artigo III:8 do mesmo Acordo deve continuar a aparecer nas próximas disputas submetidas ao OSC. Considerando a atemporalidade da questão, bem como a definição de um "subsídio" conforme estabelecido pelo ASMC, é provável que futuros relatórios do Painel e do Órgão de Apelação analisem mais profundamente se pagamentos indiretos por meio de incentivos fiscais também se encontram sob o escopo da definição de “pagamento de subsídios” conforme o Artigo III:8 do GATT.

Incentivos fiscais e a definição de subsídios

O conceito de subsídio no âmbito do ASMC, conforme definido no Artigo 1.1, considera diversas modalidades de contribuição governamental, dentre as quais estão considerados os incentivos fiscais praticados sob diferentes técnicas de tributação. Essa definição de subsídios também considera haver tal prática, inclusive, quando “receitas públicas devidas são perdoadas ou deixam de ser recolhidas (por exemplo, incentivos fiscais como as bonificações)”[9].

O Anexo I do ASMC menciona expressamente, em sua alínea “g”, as técnicas de subvenção indireta da “isenção ou remissão (...) de impostos indiretos em excesso àqueles sobre a produção e a distribuição”, como subsídios. Ao mesmo tempo, conforme apontado no item acima, o Artigo 3.1(b) do ASMC classifica como proibidos os subsídios condicionados ao uso de insumos domésticos em detrimento de mercadorias importadas.

Em contraste, uma estratégia usual dos membros da OMC para promover a consolidação da cadeia produtiva do setor automotivo, normalmente por meio de uma política de substituição de importações, inclui o estabelecimento de índices de conteúdo local na composição dos produtos finais.

A disputa “Canadá – autos” estabeleceu um precedente importante a orientar os membros na formulação de suas políticas industriais de substituição de importações: naquela ocasião, o Órgão de Apelação diferenciou requerimentos de conteúdo local estabelecidos para os propósitos de utilização de materiais e insumos domésticos de requerimentos aplicáveis a serviços domésticos. Especificamente, o programa Canadian value added (CVA) colocava que empresas canadenses teriam que considerar não apenas insumos adquiridos localmente, mas também o custo doméstico do trabalho e o custo dos serviços utilizados na produção de bens intermediários.

Assim, o Órgão de Apelação entendeu que o CVA violaria o Artigo 3.1(b) apenas na medida em que exigisse do industrial o uso exclusivo de produtos domésticos. Nesse sentido, subsídios dependentes de requerimentos de conteúdo local relacionados ao custo de serviços (em contraste com o custo de produtos), no setor produtivo, não constituiriam subsídios proibidos no sentido do Artigo 3.1(b) do ASMC.

Considerações finais

A cada dia, a capacidade dos Estados membros de regulamentar seus incentivos fiscais ao setor automotivo deverá se preocupar mais e mais com as normas e decisões do sistema multilateral de comércio, com vistas a propiciar um fluxo internacional de mercadorias livre e justo. A concessão de vantagens fiscais com vistas à atração de investimentos estrangeiros diretos recebe também atento tratamento perante a OMC.

A questão é oportuna, dado que o OSC está atualmente analisando certas disputas referentes ao tratamento tributário à indústria automotiva[10]. Nessas disputas, não restam dúvidas de que o Painel e o Órgão de Apelação deverão considerar as decisões prévias sobre o assunto.

Nesse sentido, a história da análise desses incentivos no sistema de solução de controvérsias da OMC pode ser um bom indicador para a resolução das novas disputas. A forma como governos locais procederão futuramente ao concederem incentivos às suas indústrias automotivas locais, entretanto, ainda é uma questão a ser vista.

Autores:
* Lucas Bevilacqua é doutorando e Mestre em Direito Tributário (USP) e Procurador do Estado de Goiás em Brasília (PGE/GO).
** Lucas Mandelbaum Bianchini é Advogado Associado na Área de Comércio Internacional em Barretto Ferreira e Brancher – Sociedade de Advogados (BKBG).

Fonte e referências bibliográficas em: ICTSD